Diante de tantos debates, palestras, denúncias e manifestações públicas concernentes aos tantos projetos "desenvolvimentistas" do Recife, de reestruturação e transformações em sua malha espacial urbana, recorro à historiografia para perceber que não é de hoje que essas bruscas metamorfoses urbanísticas acontecem na área da cidade. Desde que a pequena "lingueta" de terra, próxima aos arrecifes, não encontrava mais metro quadrado sequer para a sua expansão, quando no século XVII, os holandeses relatavam que os habitantes daquela pequena ilha se amontoavam uns sobre os outros em sobrados estreitos e bastante verticalizados para a época, o Recife começou a crescer para além do Capibaribe.
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O recife (porção do lado esquero) no século XVI |
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O pequeno povoado chamado "Povo" e o istmo para Olinda - século XVI |
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Outra representação do Recife na época |
De um punhado de casebres, sítios e o Convento franciscano de Santo Antônio do Recife, na ilha de mesmo nome, Nassau toma essas terras para erguer sua Mauritsstad, apresentando um traçado urbanístico que diferia do perfil luso de semeador, acusado por Sérgio Buarque de Holanda, onde o português, diferente do hispânico, tendia mais a lançar de forma quase espontânea sobre a terra as bases de suas construções, tendente a harmonizar com a própria paisagem por ele percebida. Das pontes, prédios e palácios nassovianos nada sobraria no século XVIII, mais lusitano que nunca.
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Mauritsstad no século XVII |
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A cidade Maurícia por F. Post (século XVII) |
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Palacio nassoviano da Boa Vista, onde hoje se encontra o conjunto do Carmo |
Com a saída quase diplomática dos holandeses, sem grandes exageros de heroísmos tão reafirmados pelo espírito bairrista da pátria Pernambuco, o Recife passaria por um período de certo marasmo da segunda metade do século XVII à extensão do XVIII. Desse período, são poucas as edificações que podemos encontrar resistentes ao longo da cidade, por vezes restrita às instituições religiosas que conseguiam se manter de pé pela valorização de seu uso e de suas estruturas e componentes, o que não pouparia algumas igrejas de serem demolidas no século XX para dar espaço ao fluxo dos automóveis, a crescerem em número de usuários (um quadro bem semelhante do nosso tão "sonhado" século XXI).
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O Recife do século XVIII |
É no século XVIII também quando mais arruados começam a pontuar a área do que conhecemos hoje pela Boa Vista, região a deslumbrar seu ápice de urbanismo em meados do século XIX. Diante desse panorama, cabe citar algumas construções do referido século a sobreviverem em nosso espaço-tempo: o Convento Carmelita, O conjunto franciscano da Rua do Imperador, a Igreja do Pátio de São Pedro, aquela outra da Rua Nova (Conceição dos Militares) e a Madre de Deus (tão sonhada pelas noivas).
Ainda nos "setecentos", quando os banhos de mar não eram práticas muito socialmente aceitas, comerciantes e proprietários de engenhos iniciarão um movimento de instalação de chácaras e vivendas a bordearem o Rio Capibaribe. A moda de veraneios e necessidades de cura nas águas do rio ainda limpo, possibilitarão a formação de núcleos embrionários de arruados e capelas conhecidas e visitadas em nossos dias (Jaqueira, São José dos Manguinhos, Aflitos, etc.).
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Rua da Cruz - século XIX (imagem de Luís Schlappriz) | | |
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Largo da Alfândega - século XIX (imagem de Luís Schlappriz) |
O século XIX, não só no Recife mas em todo o Brasil, reveste-se de tramas mais urbanas, símbolo dos anseios de um Estado Moderno, do ideal de progresso e desenvolvimento das ciências, do homem que havia bebido das fontes das Luzes, de uma Monarquia e sombras de República em gestação, na tendência ao desvinculamento das práticas e instituições coloniais, consideradas retrógradas e uma ameaça ao nacionalismo a tomar força.
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Matriz do Corpo Santo - demolida no início do século XX |
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Pátio do Carmo - século XIX |
Aterra-se o Recife por todos os lados. Para além do Brum na ilha de partida, em porções do bairro de São José, na Boa Vista, para o arruado da Aurora, com seus palacetes de barões voltados para o rio e à aurora da primeira manhã. É desse século que mantemos boa parte daquilo que chamamos de patrimônio histórico da cidade, a serem legitimados de interesse público ou transformarem-se em salões de festas para os edifícios de 45 andares.
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Praça da Boa Vista |
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Pátio da Penha - atuais imediações do Mercado de São José |
Em 1823, com o título de cidade, o Recife se dilata. É o século de "ouro", das instituições educacionais, da iluminação pública, da imprensa, dos meios de transporte mais modernos, da estruturação de seus cais. Século da arquitetura eclética, do romantismo em suas construções, da higienização e abertura de avenidas, do desmantelamento de cortiços e maquiagem da cidade. (Interessante que ainda percebo tendências semelhantes em nosso século, só que em doses mais agressivas, onde o capital nunca teve tanta força).
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Rua do Aterro - atual Imperatriz |
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Gravura de Emil Bauch - o porto do Recife (século XIX) |
O foco de "civilização" e glamour centrava-se no bairro de Santo Antônio, tendo o antigo Recife se convertido em reduto de prostíbulos e artistas bêbados. São erguidos o Teatro de Santa Isabel, o Palácio do Governo, o Ginásio Pernambucano (na outra margem do rio), todos no melhor do estilo neoclassico, estandarte do civilizado, do gosto inclinado ao greco-romano, representantes da razão e da máxima do humano. São os tantos empreendimentos do Conde da Boa Vista, entusiasta em situar o Recife no rol das cidades mais "desenvolvidas" no Brasil naquele momento.
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Obras do Porto - início do século XX |
Escamoteado por quase todo um século, o bairro do Recife seria o foco de atenções em fins do 19 e começo do século XX. A proposta era de uma reestruturação do bairro a partir de obras de expansão do porto do Recife, o que asseguraria um incremento na economia local e a reciclagem de um porto já obsoleto. A propaganda era a maior das otimistas. No entanto, o bairro experimentou um verdadeiro "rolo compressor" a desabar dezenas de edificações do século XVIII e XIX para a abertura de largas avenidas e espaços de ancoradouro e armazéns portuários. A Matriz do Corpo Santo (primeira edificação religiosa do Recife, datada do século XVI e que sofrera constantes transformações, então a apresentar traços de um rococó tardio) seria completamente destruída para dar espaço à Avenida Marquês de Olinda, que "deságua" no hoje Marco Zero.
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Rua da Imperatriz |
Poucos conhecem dos registros, mas a cidade apresentava em seu núcleo central, 3 arcos (numa concepção semelhante aos arcos europeus - como do Triunfo). Um deles, situado na Rua do Bom Jesus, seria totalmente demolido para o alargamento daquela via. Gestões municipais mais recentes como as de Martins de
Barros (1904), Novais Filho (1939), e principalmente a de Augusto Lucena
(1971-1975), desfigurariam por completo o espaço urbanístico do Recife, conferindo-lhe a aparência atual conhecida (e criticada) por muitos. E não pensemos que no decorrer desses processos não houveram críticas ou mobilizações contrárias!
O que acontece hoje na praça de Parnamirim, ocorreu em escala de grande porte com a construção da Avenida Dantas Barreto, tendo devastado
várias ruas de beleza tanto arquitetônica quanto
em seus próprios nomes: Rua de Santa Tereza, Rua das Trincheiras, Rua das
Laranjeiras, Rua Santa Cecília, Rua Dias Cardoso e Rua Augusta. A atual Conde da Boa Vista, também fora projeto de governos recentes, fruto de alargamentos da antiga Rua Formosa no início da década de 1950.
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O Recife sem a Dantas Barreto - década de 1930 |
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Alargamento da Conde da Boa Vista - 1953 |
Dos criticados prédios de 10 a 15 andares que desenhavam a Avenida Guararapes, nos deparamos hoje com "trombolhos" de pastilhas de banheiro de 40 a 45 pavimentos, num espaço de tempo de não mais que 50-60 anos! As perspectivas são assustadoras, para um solo bastante aterrado sobre mangue. É o que José Luiz da Mota Menezes vai apontar como "a agonia do Recife", diante de sua especulação imobiliária, causada pela expansão do capital a suprimir qualquer obstáculo que se interponha a ele.
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Igreja do Bom Jesus, destombada e demolida para as obras da Dantas Barreto |
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O Recife sem a Dantas Barreto |
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Verticalizações na Praça do Diário - década de 1930 (este prédio ainda resiste no entorno) |
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A Marquês de Olinda nos anos 1930 |
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A "cicatriz" da Dantas Barreto na década de 1970 |
O discurso de progresso e desenvolvimento, apontado por um governo partidário que abandonou seus preceitos revolucionários, em prol de uma conciliação mais reformista entre "capital e trabalho" tendentes à aumentar o poder aquisitivo do trabalhador e a sua ascensão para as classes B e C, apenas legitima sua localização dentro de um sistema que não perdeu seu caráter de exploração e exclusão social (onde o fim desses elementos significaria o fim do próprio sistema!).
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A Guararapes há não muito tempo |
O processo de individualização do capital, do aumento de automóveis circulando na praça e dos imóveis parcelados em 900 vezes, exige que o espaço urbano seja reconfigurado para tais objetivos, quando pouco importa ao capitalismo a felicidade e satisfação do homem, já que o mote mesmo é a valorização do valor, do dinheiro. E assim assistimos a cidade sendo entregue a essas grandes construtoras, acusadas de submeterem seus operários a regimes de trabalho precários ou envolvidas em escândalos de proporções nacionais, pura e simplesmente pelo "valor financeiro" falar mais alto que o bem-estar de sua população. A "agonia" se repete!