sábado, maio 05, 2012

diário (s) de viagens - Taquaritinga do Norte

Já é debate, mais que engessado no senso comum, da memória se processar nos humanos em ritmos de lembrar e esquecer. Rotineiramente esquecemos até onde deixamos aqueles papéis no dia anterior, ou um recado recém informado. O esquecer dos momentos ruins, por vezes potencializado pelos mecanismos de defesa do ego cuja psicanálise bem explica, perpassam nossas experiências. As lembranças, traduzidas em reminiscências, se voltam geralmente às boas experiências, donde suas histórias são contadas e recontadas em diferentes matizes cada vez que são solicitadas. Nessa esteira do lembrar, apelaria ao conceito de "lugares de memória", emprestado do historiador Pierre Nora, que os define não apenas como espaços, mas também elementos que conseguem re-ativar determinadas lembranças há tempos já esquecidas. Seria a chamada "lembrança involuntária" que vem à tona ao entrarmos em contato com esses elementos. Na obra "Em busca do tempo perdido", Proust apresenta um simples evento a explicar essa ideia. Ao provar uma "Madeleine" (biscotinho muito comum na França), seus sabores conseguem remeter imediatamente aos tempos de sua infância.

Botânica em Taquaritinga


Precisei de toda uma introdução para dar continuidade ao registro de minhas lembranças vivenciadas em tantas viagens que empreendi pelo Estado nos últimos dois anos. Diante da minha memória, humana e falha, e de uma distância, por menor que seja, temporal, apelarei à memória voluntária e a alguns lugares de memórias representados nas fotografias amadoras que realizei na época. Posso desviar um pouco minha escrita em ornamentar meus parágrafos com vivências outras e fantasias que se liquidificam entre minhas sinapses, peço licença de antemão, e denuncio previamente que tudo que for demonstrado nesses espaços nunca teriam a pretensão de um resgate ao passado nem de descrever o fato como realmente aconteceu, tarefas essas humanamente impossíveis.

Little Red Riding Hood - Festa das Dálias


Taquaritinga do Norte é uma pequena cidade localizada no Agreste do Estado que já povoou diversas vezes minha memória, em decorrência de parentes residentes naquela serra. Das histórias oficiais de sucessões políticas e formação do povoamento nada sei, no máximo breves passagens que me deparei em pesquisas outras a pontuarem que aquelas terras já foram de povoações indígenas, certamente escamoteadas mato a dentro com os processos de colonização "branca" em séculos recentes. O que lembro, a partir dos dias frios de ar condicionado no meu trabalho, é do clima ameno da região, transformado já em atração turística no rol de cidades interioranas como Gravatá e Garanhuns. Tanto que a inclusão da cidade no antigo "Circuito do Frio" do governo Jarbas Vasconcelos não seria à toa.

Interior da Matriz de Santo Amaro


De suas ladeiras na praça em frente à igreja de Santo Amaro guardo fotografias minhas com uns 8 anos, cara emburrada, ao lado de primos e irmã, empunhando um sorvete num verão agradável estimulado pelo sol dos agrestes. Do casamento dos meus primos na mesma igreja matriz, e de um frio de cortar as espinhas enquanto descia as escadas. Das voltas com meu pai pelas ruas ainda apinhadas de casarios históricos azulejados (hoje em dia menos frequentes), ouvindo as primeiras canções de Belle & Sebastian que havia descoberto na internet discada de meados de 2001.

Serra



Nos últimos dois anos, recordo da Festa da Dália, atração no inverno do mês de agosto, quando fui ministrar oficinas com temáticas de preservação do patrimônio, acompanhado de colegas. Na expectativa de encontrar as mesmas referências, apreendo uma paisagem diferente, daquelas que experimentava na infância ou adolescência, como se formasse um grande mosaico de "lugares de memória" com novos elementos entremeados.

Oficina


Na escola, os participantes da oficina interagiam timidamente. No entanto percebia-se que despertávamos novas perspectivas na maneira como aqueles moradores (alunos da rede de ensino fundamental e médio) poderiam se apropriar de sua cidade, entendida como um grande lugar de memória, a estimular questionamentos de sua própria história e daquilo que é transmitido como verdadeiro. O objetivo era propiciar àquele público uma auto-percepção de suas condições de sujeitos históricos em relação estreita com as tantas histórias da cidade, componentes-irmãs das minhas próprias vivências de criança naquele lugar.



Gravatá do Ibiapina

Mercado




N.S. da Conceição



 Dos intervalos de trabalho, fomos ao distrito de Gravatá do Ibiapina, ainda em 2010. Um povoamento que preservava praticamente toda sua formação espacial-arquitetônica em torno da praça e igreja de Nossa Senhora da Conceição, datadas de um período entre séculos (XIX e XX). Um amador logo atribuiria a uma cidade cenográfica de filmes "de época". Mas a vila pulsava, mesmo que em batidas descompassadas, com seus moradores de décadas, viventes de experiências ausentes nos livros e compêndios de história do Estado. Do hábito de por as cadeiras na calçada, conseguimos conversar com uma moradora, receptiva ao ponto de quase me convencer a ficar por uma semana naquele lugar, ouvindo tantas histórias que tecem aquela região serrana não muito distante do Recife.

Casa Antiga Lanches


Silenciosamente registrava o espaço em fotografias, pensando que um fluxo turístico massificado poderia reverter aquele cenário possuidor de dinâmicas e rotinas próprias, no risco de serem distorcidas por uma propaganda de viagens. A TV regional da Globo estava também presente no dia, infeliz coincidência! Da visita à igreja, o repórter logo me aborda, pedindo depoimento. Disparo logo da importância de se preservar aquele lugar de memória, experienciado por seus próprios moradores que não anseiam em instalar grandes empreendimentos a pertubarem suas vidas e ritmos.

Lembro duma reunião em família quando uma tia disse ter me visto no noticiário e que eu "falava muito bem!".



Banda Centenária



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