segunda-feira, maio 14, 2012

Da urbanização do Recife

Diante de tantos debates, palestras, denúncias e manifestações públicas concernentes aos tantos projetos "desenvolvimentistas" do Recife, de reestruturação e transformações em sua malha espacial urbana, recorro à historiografia para perceber que não é de hoje que essas bruscas metamorfoses urbanísticas acontecem na área da cidade. Desde que a pequena "lingueta" de terra, próxima aos arrecifes, não encontrava mais metro quadrado sequer para a sua expansão, quando no século XVII, os holandeses relatavam que os habitantes daquela pequena ilha se amontoavam uns sobre os outros em sobrados estreitos e bastante verticalizados para a época, o Recife começou a crescer para além do Capibaribe.

O recife (porção do lado esquero) no século XVI

O pequeno povoado chamado "Povo" e o istmo para Olinda - século XVI

Outra representação do Recife na época


De um punhado de casebres, sítios e o Convento franciscano de Santo Antônio do Recife, na ilha de mesmo nome, Nassau toma essas terras para erguer sua Mauritsstad, apresentando um traçado urbanístico que diferia do perfil luso de semeador, acusado por Sérgio Buarque de Holanda, onde o português, diferente do hispânico, tendia mais a lançar de forma quase espontânea sobre a terra as bases de suas construções, tendente a harmonizar com a própria paisagem por ele percebida. Das pontes, prédios e palácios nassovianos nada sobraria no século XVIII, mais lusitano que nunca.

Mauritsstad no século XVII




A cidade Maurícia por F. Post (século XVII)


Palacio nassoviano da Boa Vista, onde hoje se encontra o conjunto do Carmo


Com a saída quase diplomática dos holandeses, sem grandes exageros de heroísmos tão reafirmados pelo espírito bairrista da pátria Pernambuco, o Recife passaria por um período de certo marasmo da segunda metade do século XVII à extensão do XVIII. Desse período, são poucas as edificações que podemos encontrar resistentes ao longo da cidade, por vezes restrita às instituições religiosas que conseguiam se manter de pé pela valorização de seu uso e de suas estruturas e componentes, o que não pouparia algumas igrejas de serem demolidas no século XX para dar espaço ao fluxo dos automóveis, a crescerem em número de usuários (um quadro bem semelhante do nosso tão "sonhado" século XXI).

O Recife do século XVIII


É no século XVIII também quando mais arruados começam a pontuar a área do que conhecemos hoje pela Boa Vista, região a deslumbrar seu ápice de urbanismo em meados do século XIX. Diante desse panorama, cabe citar algumas construções do referido século a sobreviverem em nosso espaço-tempo: o Convento Carmelita, O conjunto franciscano da Rua do Imperador, a Igreja do Pátio de São Pedro, aquela outra da Rua Nova (Conceição dos Militares) e a Madre de Deus (tão sonhada pelas noivas).

Ainda nos "setecentos", quando os banhos de mar não eram práticas muito socialmente aceitas, comerciantes e proprietários de engenhos iniciarão um movimento de instalação de chácaras e vivendas a bordearem o Rio Capibaribe. A moda de veraneios e necessidades de cura nas águas do rio ainda limpo, possibilitarão a formação de núcleos embrionários de arruados e capelas conhecidas e visitadas em nossos dias (Jaqueira, São José dos Manguinhos, Aflitos, etc.).

Rua da Cruz - século XIX (imagem de Luís Schlappriz)

Largo da Alfândega - século XIX (imagem de Luís Schlappriz)


O século XIX, não só no Recife mas em todo o Brasil, reveste-se de tramas mais urbanas, símbolo dos anseios de um Estado Moderno, do ideal de progresso e desenvolvimento das ciências, do homem que havia bebido das fontes das Luzes, de uma Monarquia e sombras de República em gestação, na tendência ao desvinculamento das práticas e instituições coloniais, consideradas retrógradas e uma ameaça ao nacionalismo a tomar força.

Matriz do Corpo Santo - demolida no início do século XX

Pátio do Carmo - século XIX


Aterra-se o Recife por todos os lados. Para além do Brum na ilha de partida, em porções do bairro de São José, na Boa Vista, para o arruado da Aurora, com seus palacetes de barões voltados para o rio e à aurora da primeira manhã. É desse século que mantemos boa parte daquilo que chamamos de patrimônio histórico da cidade, a serem legitimados de interesse público ou transformarem-se em salões de festas para os edifícios de 45 andares.

Praça da Boa Vista

Pátio da Penha - atuais imediações do Mercado de São José


Em 1823, com o título de cidade, o Recife se dilata. É o século de "ouro", das instituições educacionais, da iluminação pública, da imprensa, dos meios de transporte mais modernos, da estruturação de seus cais. Século da arquitetura eclética, do romantismo em suas construções, da higienização e abertura de avenidas, do desmantelamento de cortiços e maquiagem da cidade. (Interessante que ainda percebo tendências semelhantes em nosso século, só que em doses mais agressivas, onde o capital nunca teve tanta força).

Rua do Aterro - atual Imperatriz


Gravura de Emil Bauch - o porto do Recife (século XIX)

O foco de "civilização" e glamour centrava-se no bairro de Santo Antônio, tendo o antigo Recife se convertido em reduto de prostíbulos e artistas bêbados. São erguidos o Teatro de Santa Isabel, o Palácio do Governo, o Ginásio Pernambucano (na outra margem do rio), todos no melhor do estilo neoclassico, estandarte do civilizado, do gosto inclinado ao greco-romano, representantes da razão e da máxima do humano. São os tantos empreendimentos do Conde da Boa Vista, entusiasta em situar o Recife no rol das cidades mais "desenvolvidas" no Brasil naquele momento.

Obras do Porto - início do século XX


Escamoteado por quase todo um século, o bairro do Recife seria o foco de atenções em fins do 19 e começo do século XX. A proposta era de uma reestruturação do bairro a partir de obras de expansão do porto do Recife, o que asseguraria um incremento na economia local e a reciclagem de um porto já obsoleto. A propaganda era a maior das otimistas. No entanto, o bairro experimentou um verdadeiro "rolo compressor" a desabar dezenas de edificações do século XVIII e XIX para a abertura de largas avenidas e espaços de ancoradouro e armazéns portuários. A Matriz do Corpo Santo (primeira edificação religiosa do Recife, datada do século XVI e que sofrera constantes transformações, então a apresentar traços de um rococó tardio) seria completamente destruída para dar espaço à Avenida Marquês de Olinda, que "deságua" no hoje Marco Zero.

Rua da Imperatriz


Poucos conhecem dos registros, mas a cidade apresentava em seu núcleo central, 3 arcos (numa concepção semelhante aos arcos europeus - como do Triunfo). Um deles, situado na Rua do Bom Jesus, seria totalmente demolido para o alargamento daquela via. Gestões municipais mais recentes como as de Martins de Barros (1904), Novais Filho (1939), e principalmente a de Augusto Lucena (1971-1975), desfigurariam por completo o espaço urbanístico do Recife, conferindo-lhe a aparência atual conhecida (e criticada) por muitos. E não pensemos que no decorrer desses processos não houveram críticas ou mobilizações contrárias!

O que acontece hoje na praça de Parnamirim, ocorreu em escala de grande porte com a construção da Avenida Dantas Barreto, tendo devastado várias ruas de beleza tanto arquitetônica quanto em seus próprios nomes: Rua de Santa Tereza, Rua das Trincheiras, Rua das Laranjeiras, Rua Santa Cecília, Rua Dias Cardoso e Rua Augusta. A atual Conde da Boa Vista, também fora projeto de governos recentes, fruto de alargamentos da antiga Rua Formosa no início da década de 1950.

O Recife sem a Dantas Barreto - década de 1930

Alargamento da Conde da Boa Vista - 1953


Dos criticados prédios de 10 a 15 andares que desenhavam a Avenida Guararapes, nos deparamos hoje com "trombolhos" de pastilhas de banheiro de 40 a 45 pavimentos, num espaço de tempo de não mais que 50-60 anos! As perspectivas são assustadoras, para um solo bastante aterrado sobre mangue. É o que José Luiz da Mota Menezes vai apontar como "a agonia do Recife", diante de sua especulação imobiliária, causada pela expansão do capital a suprimir qualquer obstáculo que se interponha a ele.

Igreja do Bom Jesus, destombada e demolida para as obras da Dantas Barreto
O Recife sem a Dantas Barreto

Verticalizações na Praça do Diário - década de 1930 (este prédio ainda resiste no entorno)
A Marquês de Olinda nos anos 1930
A "cicatriz" da Dantas Barreto na década de 1970


O discurso de progresso e desenvolvimento, apontado por um governo partidário que abandonou seus preceitos revolucionários, em prol de uma conciliação mais reformista entre "capital e trabalho" tendentes à aumentar o poder aquisitivo do trabalhador e a sua ascensão para as classes B e C, apenas legitima sua localização dentro de um sistema que não perdeu seu caráter de exploração e exclusão social (onde o fim desses elementos significaria o fim do próprio sistema!). 

A Guararapes há não muito tempo


O processo de individualização do capital, do aumento de automóveis circulando na praça e dos imóveis parcelados em 900 vezes, exige que o espaço urbano seja reconfigurado para tais objetivos, quando pouco importa ao capitalismo a felicidade e satisfação do homem, já que o mote mesmo é a valorização do valor, do dinheiro. E assim assistimos a cidade sendo entregue a essas grandes construtoras, acusadas de submeterem seus operários a regimes de trabalho precários ou envolvidas em escândalos de proporções nacionais,  pura e simplesmente pelo "valor financeiro" falar mais alto que o bem-estar de sua população. A "agonia" se repete! 


sábado, maio 05, 2012

diário (s) de viagens - Taquaritinga do Norte

Já é debate, mais que engessado no senso comum, da memória se processar nos humanos em ritmos de lembrar e esquecer. Rotineiramente esquecemos até onde deixamos aqueles papéis no dia anterior, ou um recado recém informado. O esquecer dos momentos ruins, por vezes potencializado pelos mecanismos de defesa do ego cuja psicanálise bem explica, perpassam nossas experiências. As lembranças, traduzidas em reminiscências, se voltam geralmente às boas experiências, donde suas histórias são contadas e recontadas em diferentes matizes cada vez que são solicitadas. Nessa esteira do lembrar, apelaria ao conceito de "lugares de memória", emprestado do historiador Pierre Nora, que os define não apenas como espaços, mas também elementos que conseguem re-ativar determinadas lembranças há tempos já esquecidas. Seria a chamada "lembrança involuntária" que vem à tona ao entrarmos em contato com esses elementos. Na obra "Em busca do tempo perdido", Proust apresenta um simples evento a explicar essa ideia. Ao provar uma "Madeleine" (biscotinho muito comum na França), seus sabores conseguem remeter imediatamente aos tempos de sua infância.

Botânica em Taquaritinga


Precisei de toda uma introdução para dar continuidade ao registro de minhas lembranças vivenciadas em tantas viagens que empreendi pelo Estado nos últimos dois anos. Diante da minha memória, humana e falha, e de uma distância, por menor que seja, temporal, apelarei à memória voluntária e a alguns lugares de memórias representados nas fotografias amadoras que realizei na época. Posso desviar um pouco minha escrita em ornamentar meus parágrafos com vivências outras e fantasias que se liquidificam entre minhas sinapses, peço licença de antemão, e denuncio previamente que tudo que for demonstrado nesses espaços nunca teriam a pretensão de um resgate ao passado nem de descrever o fato como realmente aconteceu, tarefas essas humanamente impossíveis.

Little Red Riding Hood - Festa das Dálias


Taquaritinga do Norte é uma pequena cidade localizada no Agreste do Estado que já povoou diversas vezes minha memória, em decorrência de parentes residentes naquela serra. Das histórias oficiais de sucessões políticas e formação do povoamento nada sei, no máximo breves passagens que me deparei em pesquisas outras a pontuarem que aquelas terras já foram de povoações indígenas, certamente escamoteadas mato a dentro com os processos de colonização "branca" em séculos recentes. O que lembro, a partir dos dias frios de ar condicionado no meu trabalho, é do clima ameno da região, transformado já em atração turística no rol de cidades interioranas como Gravatá e Garanhuns. Tanto que a inclusão da cidade no antigo "Circuito do Frio" do governo Jarbas Vasconcelos não seria à toa.

Interior da Matriz de Santo Amaro


De suas ladeiras na praça em frente à igreja de Santo Amaro guardo fotografias minhas com uns 8 anos, cara emburrada, ao lado de primos e irmã, empunhando um sorvete num verão agradável estimulado pelo sol dos agrestes. Do casamento dos meus primos na mesma igreja matriz, e de um frio de cortar as espinhas enquanto descia as escadas. Das voltas com meu pai pelas ruas ainda apinhadas de casarios históricos azulejados (hoje em dia menos frequentes), ouvindo as primeiras canções de Belle & Sebastian que havia descoberto na internet discada de meados de 2001.

Serra



Nos últimos dois anos, recordo da Festa da Dália, atração no inverno do mês de agosto, quando fui ministrar oficinas com temáticas de preservação do patrimônio, acompanhado de colegas. Na expectativa de encontrar as mesmas referências, apreendo uma paisagem diferente, daquelas que experimentava na infância ou adolescência, como se formasse um grande mosaico de "lugares de memória" com novos elementos entremeados.

Oficina


Na escola, os participantes da oficina interagiam timidamente. No entanto percebia-se que despertávamos novas perspectivas na maneira como aqueles moradores (alunos da rede de ensino fundamental e médio) poderiam se apropriar de sua cidade, entendida como um grande lugar de memória, a estimular questionamentos de sua própria história e daquilo que é transmitido como verdadeiro. O objetivo era propiciar àquele público uma auto-percepção de suas condições de sujeitos históricos em relação estreita com as tantas histórias da cidade, componentes-irmãs das minhas próprias vivências de criança naquele lugar.



Gravatá do Ibiapina

Mercado




N.S. da Conceição



 Dos intervalos de trabalho, fomos ao distrito de Gravatá do Ibiapina, ainda em 2010. Um povoamento que preservava praticamente toda sua formação espacial-arquitetônica em torno da praça e igreja de Nossa Senhora da Conceição, datadas de um período entre séculos (XIX e XX). Um amador logo atribuiria a uma cidade cenográfica de filmes "de época". Mas a vila pulsava, mesmo que em batidas descompassadas, com seus moradores de décadas, viventes de experiências ausentes nos livros e compêndios de história do Estado. Do hábito de por as cadeiras na calçada, conseguimos conversar com uma moradora, receptiva ao ponto de quase me convencer a ficar por uma semana naquele lugar, ouvindo tantas histórias que tecem aquela região serrana não muito distante do Recife.

Casa Antiga Lanches


Silenciosamente registrava o espaço em fotografias, pensando que um fluxo turístico massificado poderia reverter aquele cenário possuidor de dinâmicas e rotinas próprias, no risco de serem distorcidas por uma propaganda de viagens. A TV regional da Globo estava também presente no dia, infeliz coincidência! Da visita à igreja, o repórter logo me aborda, pedindo depoimento. Disparo logo da importância de se preservar aquele lugar de memória, experienciado por seus próprios moradores que não anseiam em instalar grandes empreendimentos a pertubarem suas vidas e ritmos.

Lembro duma reunião em família quando uma tia disse ter me visto no noticiário e que eu "falava muito bem!".



Banda Centenária