(texto de algum mês e ano que se perdeu)
No meu reino, queimei o trono, entreguei as chaves do palácio ao povo e enterrei o tesouro da família no cemitério próximo da igreja. Cortei meus cabelos com uma faca cega da cozinha e pus minha armadura. Selei o velho cavalo e sai na caça ao amor. Não para aprisioná-lo, não para conquistá-lo, mas sai em busca da sua cabeça, pois finalmente iriam me oferecer como recompensa a paz de espírito.
E diziam os trovadores do reino que o amor era ardiloso, se espalhava por corações alheios, corações bobos e fracos, e que era difícil encontra-lo em sua forma única, materializada. Pois ele, com os ventos, confundia os olhos daqueles que como eu buscavam a sua sentença.
Alguns velhos rancorosos diziam que o amor poderia se materializar durante a noite, nas noites de lua forte, e longe das casas e de qualquer barulho humano, e que por entre as árvores ele as confundia, fazendo com que no dia seguinte muitas dessas árvores aparecessem com frutos que podiam saciar a fome ou envenenar os seres humanos, a depender da crença de cada um e de definições alheias sobre o amor.
Ao se materializar, o amor tomava forma, segundo os anciãos, de algum animal, geralmente desses mamíferos, daqueles que vivem toda uma vida fieis ao seu companheiro. Não por uma questão social, mas simplesmente por instinto, por algo a brotar de suas próprias vísceras, algo incomum, mesmo raro, nos humanos. Mas o tal animal que o amor se apresentava estava sozinho e tinha a consciência de sua condição, e no dia seguinte, mais uma vez, ele se desmaterializava e invadia os corações fracos dos desavisados, fazendo com que cada vítima se sentisse sozinha, assim como quando o amor era um animal. Porém, os bobos não tinham consciência da sua própria solidão e passavam o resto de suas vidas a acreditar que haveria um outro ser para que se tornassem um só. Era exatamente por esses seres pensarem assim que os velhos os chamavam de tolos.
Já os trovadores, apesar de jovens, já haviam sido arrebatados e enganados pelo amor. Mas esses, por sua própria esperteza de vida, conseguiam se desvencilhar das armadilhas que essa força, à espreita, costumava devorar as almas. E desde então, os trovadores passavam a contar sobre ele, para manter em paz seus corações e impedir que o amor os invadisse de novo.
E nas minhas andanças pelo meu antigo reino, em busca da cabeça do amor, encontrava os velhos a falar dos tolos e os trovadores a declamar sobre as armadilhas do amor. E todos me encorajavam para que minha busca terminasse por bem sucedida, para que assim pudesse viver meus anos tranquilos.
E meses se passavam. Costumava me manter acordado nas noites de alta lua, a vagar pelas florestas densas e isoladas dos vilarejos em busca da materialização do amor. Porém, não obtinha sucesso.
Houve uma noite em que fui parar num mosteiro, gigantesco, onde logo pedi abrigo, pois já se passavam três dias seguidos sem um só descanso por aquelas partes já muito altas do reino. Altas e muito frias, há milhas de distância da capital.
Logo tomo conhecimento de que só moravam 5 frades, numa construção com mais de 30 quartos, salas, jardins, capelas, pátios e claustro. Tratava-se de um local fabuloso que respirava uma certa opulência por suas dimensões, apesar de seu espírito modesto. Pensei por uns momentos se ali não estaria a minha tão desejada paz, mas o amor ainda vivia e não conseguia ter noites de sono tranquilas enquanto ele vagava por aí entre os corações e as árvores.
No mosteiro descubro que dois dos frades já foram vítimas do amor, mas que sozinhos conseguiram capturá-lo e espantá-lo para longe daquelas terras. Estaria eu, então, a procurar nas bandas erradas? E por que os frades não mataram o amor? Não seria mais prático? No mesmo dia, soube de um outro frade que ia sempre ao vilarejo mais próximo, que lá o amor tinha feito suas vítimas mais recentes. A partir desses relatos percebi como o amor pode ser cruel, e que mais do que nunca deveria cumprir minha missão, para minha paz e para a paz do povo que um dia governei.
No dia seguinte à minha conversa com este último frade, e já passado seis dias de minha estadia no mosteiro, decido partir numa busca incessante pelo amor, só a descansar quando banhasse a lâmina de minha espada com sua vida. Ódio espalhado. Culpa do amor.
Passaram-se semanas, e pelo mapa já tinha percorrido por praticamente todo o território do reino. Mas ainda me faltavam as terras próximas do mar ao SUL, onde o amor certamente estaria se escondendo. Segui então minha viagem sem paradas, convencido a acabar de uma vez por todas com essa força!